Da série “Os maiores erros judiciários brasileiros”: o Caso dos Irmãos Naves

Da série “Os maiores erros judiciários brasileiros”: o Caso dos Irmãos Naves

Esse caso, como muitos outros, não merece ser esquecido… responde à clássica pergunta: “por que devemos aplicar pontualmente os direitos que nos são constitucionalmente garantidos? Por que devemos, obrigatória e precipuamente, garanti-los aos acusados de crimes quaisquer?”. Não apenas porque nossa Constituição, como dirigente que é, restringe os poderes do Estado, e nem mesmo porque, em conformidade com a Constituição, o Direito Penal restringe, em ultima ratio, a liberdade de um indivíduo, mas porque, quando mal aplicado, ou inobservadas suas diretrizes, destrói não apenas seu alvo direto, mas toda uma família, bem como envergonha uma sociedade…

Onde tudo começou…

Esta é a história de Joaquim Naves Rosa e Sebastião José Naves, filhos de Ana Rosa Naves. Sebastião tinha 32 anos, era casado e tinha dois filhos. Joaquim tinha 27 anos, era casado e tinha uma filha.

A data em que se inicia a história é 29 de novembro de 1937 e o cenário é a cidade de Araguari, em Minas Gerais. Nessa madrugada, Benedito Pereira Caetano, após se ver obrigado a vender com prejuízo uma safra de arroz, que comprara com dinheiro emprestado por sua família, sem se despedir de ninguém, sumiu da cidade levando consigo noventa contos de réis. Benedito era primo de Joaquim e Sebastião Naves e estava hospedado na casa de Joaquim há 2 meses, de quem era sócio na propriedade de um caminhão Ford V-8, usado para transportar cereais e vende-los na cidade.

Os irmãos procuram Benedito por toda a cidade, mas não o encontraram; comunicaram o fato à polícia. O delegado Ismael Nascimento, um civil acumulando as funções de delegado e contador, pede aos irmãos para irem a fazenda do pai de Benedito para ver se ele estava lá e abre um inquérito para investigar o desaparecimento.

Até aí, o inquérito corria normalmente, mas de difícil averiguação, pois não se encontrava qualquer indício do paradeiro de Benedito, nem razões para seu sumiço. No final de dezembro de 1937, o governo – então o Estado Novo de Getúlio Vargas – determina a substituição do delegado civil Ismael Nascimento por um militar, o tenente da Força Pública Francisco Vieira dos Santos. Neste mesmo dia, os irmãos Naves, suas mulheres e sua mãe têm uma notícia para dar ao delegado: Benedito teria sido visto por Zé Prontidão – um caminhoneiro assim chamado por fazer ‘bicos’ como ajudante – saindo de Uberlândia.

O início do calvário…

O tenente não acreditou na história contada pelos Naves e mandou prender Joaquim, por ser sócio de Benedito, achando, com certeza (!), que isso era motivo para que ele tivesse alguma coisa a ver com o desaparecimento.

Inquirido pelo delegado, Zé Prontidão disse o que já havia dito a Donana (Ana Rosa Naves, mãe dos irmãos), que quando ela lhe falou estar preocupada com o desaparecimento de Benedito Pereira Caetano, informou que um homem dizendo chamar-se Benedito Pereira havia pedido emprego no lugar onde ele trabalhava, e que lá trabalhou por três dias. Depois disso, ele o viu num posto de gasolina com uma mala, dizendo que ia pegar uma carona num caminhão e nunca mais foi visto.

O tenente-delegado mandou Zé Prontidão aguardar do lado de fora da sala e, em seguida, mandou o escrivão prendê-lo.

Janeiro de 1938

Alguns dias depois, o tenente faz Zé Prontidão voltar a sua presença, ainda com a mesma roupa, sujo, barbado, rasgado e combalido, com aspecto de quem sofreu muito. O tenente pergunta-lhe se a história que ele havia contado não era mentira, ameaçando mandá-lo novamente “lá para baixo” se não dissesse a verdade. Zé Prontidão, apavorado, falou apenas: “É… foi… foi, sim senhor. Eu inventei.” O delegado pergunta se Joaquim prometeu-lhe dinheiro para dizer que vira Benedito em Uberlândia, e Zé Prontidão, cada vez mais apavorado, disse que ele prometeu sim… e respondeu tudo mais que o tenente queria, sempre respondendo primeiro a verdade e depois, ameaçado, informava o que o tenente queria, ficando o depoimento exatamente como pretendia o tenente.

Durante todo o tempo do depoimento de Zé Prontidão, ouviam-se os gritos de Joaquim e Sebastião no porão: estavam sendo torturados.

A partir de então, a população da cidade começou a formar opinião, aceitando a hipótese do tenente, que acreditava que os Naves mataram Benedito para ficar com os 90 contos.

Em seguida, foram presos Sebastião e Joaquim Naves e sua mãe Ana Rosa, senhora de 66 anos de idade, para tentar forçar a “confissão” que o tenente desejava. Todas as torturas lhe foram impostas: surra, bofetões, socos, chutes… a intenção do tenente era que a mãe, vendo os filhos apanharem, ou vice-versa, confessasse.

Como eles resistiam, a tortura foi a extremos: surraram os irmãos na frente da pobre senhora, amarrou-os nus de frente para a mãe, que também estava amarrada e nua, deixando-os por uma semana sem qualquer alimentação, inclusive sem água. Diante da inflexibilidade dos três Naves, o tenente foi ao absurdo da bestialidade, crueldade e violência, estuprando dona Ana Rosa e, em seguida, chamou seus subordinados para que fizessem o mesmo, tudo isso na frente de seus filhos. Até aí mãe e filhos conseguiram suportar, mas o tenente, insaciável em sua sanha, não parou aí e, depois de muito mais torturas, conseguiu arrancar de dona Ana Rosa a acusação de seus filhos.

Ao se ver livre da cadeia, Donana foi procurar o advogado João Alamy Filho que, de alguma forma, estava influenciado pela opinião pública, aceitando a culpa dos irmãos Naves. No entanto, após ouvir a narrativa de Donana sobre as torturas sofridas por ela, seus filhos e demais envolvidos e o desespero de Donana, ficou tão indignado que, como advogado e cristão, não pôde mais se eximir de atuar na defesa dos Naves.

Ana Rosa Naves, a Donana.
Ana Rosa Naves, a Donana.

Enquanto o advogado João Alamy Filho – baseado no que diz a Constituição: “Dar-se-á habeas-corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal(…)” – pensava no habeas-corpus que impetraria, Sebastião e Joaquim Naves estavam em um lugar ermo, um pendurado de cabeça para baixo em uma árvore e o outro amarrado no tronco de outra árvore, sofrendo novas e cada vez mais cruéis torturas. Chegaram a ameaçar Joaquim dizendo que iam matar Sebastião, que foi levado para fora do raio de visão de Joaquim e deram tiros, simulando o assassinato. Enfim, fingiram que iam matar Joaquim e, ao apontarem a arma para sua cabeça, Joaquim não mais resistiu e gritou que falaria o que o tenente quisesse.

Já na delegacia, o tenente fez um interrogatório absurdo:

– Vocês convidaram Benedito para ir a Uberlândia? Benedito aceitou o convite?

– Aceitou.

– O que vocês disseram para ele aceitar o convite? Um passeio? É, um passeio – decidiu o tenente e já ditou para o escrivão anotar.

E assim seguiu o depoimento, com o tenente afirmando e Joaquim concordando, levado pelo medo:

“Que no dia vinte e nove de novembro do ano passado às duas horas da madrugada mais ou menos, estava em companhia de seu irmão Sebastião José Naves em sua casa, esperando a chegada de Benedito Pereira Caetano a fim de convidá-lo para um passeio a Uberlândia; que poucos momentos depois, chegava Benedito Pereira Caetano, na casa do declarante, sendo então convidado pelo declarante e o seu irmão Sebastião, para o dito passeio a Uberlândia; que Benedito Pereira aceitou o convite para o passeio referido, entrando no mesmo momento todos os três para dentro do caminhão, pondo-o em marcha, tomando a direção da ponte do Pau Furado, isto às três horas da madrugada; que, depois de atravessarem a referida ponte, isto pelas quatro horas da madrugada, mais ou menos, apearam do dito caminhão, o declarante, seu irmão Sebastião e Benedito, com o fim de tomarem água; que desceram o paredão até a margem do rio, estando seu irmão na frente, Benedito no centro e o declarante atrás, o qual levava oculta uma corda de bacalhau de um metro e tanto; que chegados na beira do rio, Sebastião agarrou Benedito pelas costas e o declarante fez um nó na dita corda, introduzindo-a pela cabeça de Benedito até o pescoço, apertando-a logo em seguida, e Sebastião em um movimento brusco largou os braços de Benedito auxiliando o declarante a apertar a corda; que, Benedito nesse momento desfaleceu, caindo de joelhos, até ficar sem vida, e que foi verificado pelo declarante e seu irmão Sebastião; que este logo em seguida procedeu a uma busca em Benedito, sacando da cintura deste um pano que o mesmo trazia amarrado à cintura, por dentro da cueca e onde o declarante e o seu irmão sabiam que existia a importância mais ou menos de noventa contos de réis em dinheiro, cuja importância o seu irmão Sebastião depositou em uma latinha de soda adrede preparada pelo declarante para esse mesmo fim que transportou-a de sua casa; que em seguida seu irmão Sebastião pegou o cadáver de Benedito pela cabeça e o declarante pelos pés, atirando-o na cachoeira do Rio das Velhas, do lado de baixo da ponte; tendo deixado na beira do dito rio a corda com que se utilizaram para a execução do crime e o pano onde continha o dinheiro que a vítima conduzia; que, em seguida tomaram o caminhão de volta para esta cidade; que, em certa altura, nas proximidades da fazenda de Olímpio de Tal, o declarante que guiava o caminhão, fez uma parada por ordem de seu irmão Sebastião; que conduzia o dinheiro, deixando em seguida o caminhão na estrada entrando para o mato, beirando uma cerca de arame, numa distância de uns quinhentos metros ou talvez um quilômetro, pararam ambos em uma moita de capim gordura onde Sebastião começou a cavar um buraco com as unhas, sempre de posse da lata onde se continha o dinheiro e, auxiliado pelo declarante que ainda ajudou a acabar de furar o dito buraco, onde enterraram a lata que continha o dinheiro. Diz o declarante que fizeram de balisa duas árvores das proximidades a fim de que em ocasião oportuna fossem retirar o fruto do saque.”

Depois desse depoimento, o tenente promoveu a reconstituição do “crime”, que nada mais foi do que a representação do script que ele havia criado, tendo ele mesmo por diretor. Em seguida foram para a fazenda de Olímpio procurar a tal lata que continha o dinheiro e mandaram Joaquim cavar. Joaquim, sôfrego, cavava com as mãos, como se achasse que ali ia encontrar alguma coisa. Nada achava e começava a cavar em outro lugar e assim continuou por horas. O tenente se mostrava irritado, decepcionado, como se acreditasse que realmente o dinheiro estava ali.

De volta a delegacia, o tenente disse a Joaquim que não vai mais admitir vexames como aquele e que ele tem que dizer onde está o dinheiro. Joaquim não tem mais forças e sob mais ameaças, mais uma vez concorda quando o tenente afirma que Sebastião já tinha tirado o dinheiro do esconderijo. E quando o tenente pergunta onde ele o teria escondido, Joaquim diz que acha que ficou com o cunhado dele, Inhozinho.

Na fazenda de Inhozinho, o tenente e seus soldados já entram batendo e ameaçando. Mesmo apanhando, Inhozinho nada diz, porque, obviamente, nada tem a dizer. Diz que é homem honesto, homem de bem e que nada sabe sobre essa história de 90 contos. Agredido física e verbalmente, Inhozinho nega todas as perguntas do tenente, mesmo assim é levado preso.

Nesta altura, o advogado João Alamy conseguiu o habeas-corpus em Uberlândia e o leva ao juiz local, que era um contador, juiz de paz, que estava no cargo apenas de passagem. Ele apresenta-lhe um papel em que o tenente afirma já ter soltado os Naves uma vez e que não pode soltar novamente por não poder se responsabilizar pelas iras da cidade. Tudo mentira, retruca Alamy, os Naves nunca saíram da prisão, a não ser para apanhar longe da cidade. Os Naves continuam presos.

O dinheiro não foi encontrado, mas depois da confissão de Joaquim, o pai de Benedito passou a acreditar que os irmãos haviam matado seu filho e nomeia um advogado para representá-lo.

Ainda querendo saber do dinheiro, o tenente faz mais uma pergunta-afirmação a Joaquim:

– Onde vocês colocaram o dinheiro? Deram pro advogado? Deram pra sua mãe?

– É – respondeu Joaquim.

– Ficou com ele então?

– É.

– Tua mulher viu você dar o dinheiro a sua mãe?

– É.

Antônia Rita, mulher de Joaquim, foi presa com sua filhinha ainda de colo e também foi submetida ao interrogatório do tenente-delegado. Um soldado suspende a menina nos braços esticados e o tenente, mostrando um punhal, ameaça dizendo que o soldado vai jogar a menina para o alto e ele vai aparar com o punhal. Antônia Rita suplica, o soldado faz o gesto de quem vai atirar a menina para cima, o tenente se prepara para apará-la e Antônia Rita cede, apavorada, àquela farsa. Dirá o que o tenente quiser.

Salvina, mulher de Sebastião, também foi interrogada pelo tenente e disse que ele era inocente, que não matou ninguém e que não saiu de casa naquela noite, pois, dormiu ao seu lado. O tenente insistiu chamando-a por palavras pesadas, ameaçando matar seus filhos se ela não falasse a “verdade”: que ele tinha saído com Benedito e Joaquim, que matou Benedito na ponte do Pau Furado, roubando o dinheiro. Salvina diz que nada daquilo é verdade, que Sebastião nada fizera. Furioso o tenente cada vez mais agressivo, diz que Joaquim e Antônia Rita já tinham confessado e que ela estava mentindo. Totalmente descontrolado, o tenente chama dois de seus soldados e ordena que tirem a roupa de Salvina porque “ele sabe o que ela está querendo”. Salvina, que tinha um de seus filhos no colo, luta com eles, mas é imobilizada e, sob as ordens do tenente, tem arrancada sua blusa. Foi demais para Salvina, que também terminou por dizer que falaria o que o tenente quisesse.

Julgamentos…

A primeira testemunha foi Miguel Camarano, que esteve presente na “reconstituição do crime” e na busca do dinheiro que o tenente dizia estar ali enterrado. Camarano recitou seu script, como queria o tenente, mas como o advogado dos réus, João Alamy Filho, reclamou ao juiz pela presença do tenente no tribunal, o que constrangia as testemunhas, ele o ameaçou com frases como “não posso responder pela segurança desse advogado” e “ele que se cuide”.

A segunda testemunha foi o motorista que conduzia o tenente nas diligências e que se não via, ouvia os gritos dos acusados nas sessões externas de tortura e, também ele, recitou o script determinado pelo tenente.

Após, Inhozinho testemunhou com medo, e pelo medo acabou dizendo que era homem de bem e que não merecia as surras que havia levado, mas negou ter conhecimento de qualquer ato mal feito dos irmãos Naves.

Testemunhou Antônia Rita, apavorada, que nem esperou perguntas, foi logo recitando tudo que o tenente a havia obrigado. Falou do passeio a Uberlândia, do marido ter desenterrado o dinheiro e entregue à mãe. Quando o advogado Alamy lhe pergunta sobre o que aconteceu ANTES de ela contar essa história ao tenente, ela fica mais amedrontada e começa a repetir mecanicamente tudo que já havia dito.

Depôs Salvina, que disse a verdade, sem medo falou que seu marido não tinha saído na noite do sumiço de Benedito e, apesar de toda a sua segurança nas respostas, o advogado do pai de Benedito fez registrar que ela vacilou em algumas.

Chega a vez dos acusados. A pergunta “têm algo a alegar a bem de sua defesa?”, Sebastião diz “não” e Joaquim diz “Meu irmão é que quis matar Benedito”. Os dois dizem o que o tenente mandou. Donana, porém, na sua vez, diz que é inocente e que seus filhos também são inocentes. Que os dois e Antônia Rita estão doidos, que ela não recebeu dinheiro nenhum, que isso é doidice ou pancada, que todos apanharam muito.

17 de março de 1938

Nesta altura, toma posse em Araguari o novo juiz, quando o contador-juiz de paz é substituído. Desta vez, um juiz de fato. No dia de sua posse, o advogado Alamy entregou a ele um habeas corpus, o segundo que obtivera em Uberlândia, dizendo-lhe que o primeiro não havia sido cumprido. De imediato o juiz despachou o “cumpra-se”, determinando ao oficial de justiça que o cumprisse. Mal saiu da sala do juiz, volta o oficial dizendo que o delegado disse não poder soltar os denunciados, porque tem diligências a cumprir determinadas pelo antigo juiz. Alamy o alerta dizendo que aquilo era uma manobra para manter os réus presos e que o delegado estava fazendo com ele o mesmo que havia feito com o juiz-contador e ainda acrescentou que os presos estavam amarrados e amordaçados como animais, no cárcere.

Trechos da sentença de pronúncia:

“O crime de que se ocupa este processo é da espécie daqueles que exigem do julgador inteligência aguda… pois, no Juízo Penal, onde estão em perigo a honra e a liberdade alheias, deve o julgador preocupar-se com a possibilidade tremenda de um erro judiciário… É certo que não há notícia do paradeiro da vultosa soma… Informa o patrono dos acusados que tais confissões são produto de maus tratos e desumanidade… Compulsadas as páginas do processo com a maior cautela, não se divisa, porém, a prova de extorsão das declarações dos inculpados… As informações de Antônia Rita são impressionantes, pois desvendam a conversa íntima havida entre marido e mulher, revelam o bárbaro crime nos mínimos detalhes… E não se diga que tais declarações foram extorquidas pela Justiça… A confissão do réu prestada na polícia constitui meia prova, como adverte Edgar Costa… até mesmo a confissão alcançada por meio de torturas, uma vez que coincida com as demais circunstâncias do crime… Se de um lado se levanta a acusação forrada de monstruosidades, do outro se ergue a voz da justiça, imparcial e humana, por isso mesmo sujeita às contigências da fatalidade… Julgo procedente a denúncia para pronunciar, como pronuncio, os indivíduos Joaquim Naves Rosa e Sebstião José Naves.”

27 de junho de 1938

No julgamento, pergunta o juiz ao primeiro réu:

– O réu Sebastião José Naves tem algo a alegar a bem de sua defesa?

– Tudo que disse foi de medo e pancada, seu juiz… sofri até não poder mais, para soltar as mentiras desse processo… me davam purgante… me amarravam, me surravam tanto, tanto que depois não podia mais… meu corpo se encheu de sangue… até minha mãe apanhou… deixaram ela nua… aguentei 38 dias… aí tive que falar mentira… qualquer um falava daquele jeito… juro por Deus e meus filhos… sou inocente.

O juiz pergunta ao segundo réu:

– O réu Joaquim Naves Rosa tem algo a alegar a bem de sua defesa?

– Não matei… não fiz nada, seu juiz… sou inocente… falei por causa dos espancamentos, das ameaças, falei por causa de seu delegado… tudo que eu disse foi para não sofrer mais. O delegado me forçou… falou até que tinha matado meu irmão… ele vai me bater ainda mais, seu juiz… pelo amor de Deus… não me manda mais para o seu delegado… ele vai me bater de novo, seu juiz.

A sentença a este julgamento absolveu os dois réus, por seis votos contra 1:

“Em conformidade com as decisões do Conselho de Sentença, tomadas por maioria absoluta de votos, julgando improcedentes a acusão levantada pela Justiça Pública contra os réus Sebastião José Naves e Joaquim Naves Rosa, eu os absolvo e mando que transitado em julgado a decisão, se dê baixa dos seus nomes no rol dos culpados e sejam postos em liberdade. Custas pelos cofres do Estado…”

Porém a Promotoria apela ao Tribunal de Justiça de Belo Horizonte, que anula o processo por falta de votação dos quesitos de co-autoria, determinando novo julgamento para março de 1939.

21 de março de 1939

Preside esse julgamento o douto magistrado Merolino R. Lima, tendo como promotor público Dr. Moysés Rodrigues Alves e, como assistente de acusação, Dr. Osvaldo Pierucetti. Em 22 de março, os Naves são absolvidos pelo júri, mas outra vez com um voto contrário. O Ministério Público apela novamente da decisão.

4 de julho de 1939

No intermédio para esse terceiro julgamento, o regime ditatorial retirou a soberania do Tribunal do Júri e, desta vez, o Tribunal de Apelação do Estado de Minas Gerais os condena à 25 anos e 6 meses de reclusão.

Injustiça no caso dos Irmãos Naves foi retratada no cinema brasileiro, em 1967

1940

Nova revisão do processo, interposta pelo Dr. Alamy Filho, atenuou a pena para 16 anos e 6 meses.

1946

Após 8 anos, 3 meses e um dia de cárcere, Dr. Alamy ingressa com o pedido de livramento condiconal, o que foi deferido aos irmãos Naves em 25 de maio de 1946.

1948

Dois anos depois da liberdade, após longa enfermidade, Joaquim Naves Rosa morreu no Asilo da Sociedade de São Vicente de Paulo, em Araguari, no dia 28 de agosto.

Antes dele, no dia 25 de agosto, também faleceu o tenente Francisco, vítima de um AVC.

1952

No dia 24 de julho, depois de 15 anos, Sebastião José Naves, acompanhado pela polícia, encontra Benedito Pereira Caetano vivo, dormindo, na fazenda do pai, em Nova Ponte. Com medo de ser preso, Benedito acompanhou Sebastião até a cidade de Araguari, escoltados pela guarda da polícia, para que todos vissem que ele estava vivo e que os irmãos Naves sempre foram inocentes.

Embora tenha sido colocado na cadeia e submetido a interrogatório – claro que nada comparado ao que passou a família Naves – contra ele não podia haver qualquer acusação.

Coincidência ou não, toda a família de Benedito Pereira morreu em um acidente de avião, quando eram transportados para Araguari, com o fim de prestar depoimento sobre o desaparecimento de Benedito.

Os herdeiros da família Naves, nesta época, foram procurados por muitos cidadãos para pedirem desculpas pelo ocorrido; a cidade foi encoberta pela vergonha e remorso. Na semana seguinte, faleceu Donana.

1953

No dia 14 de outubro, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, na Revisão Criminal n. 1632, decidiu ABSOLVER os irmãos Naves, reconhecendo-lhes o direito a uma indenização; no acórdão, o desembargador relator, José M. Burnier Pessoa de Melo, referindo-se ao advogado de defesa, escreveu:

“João Alamy Filho, embora notoriamente ameaçado de morte pela Polícia, resistiu com intrepidez bravia e jamais se afastou um milímetro sequer do lugar geométrico do advogado, aliás, grande advogado brasileiro, da estirpe dos Mendes Pimentel e J. Nogueira Itagiba.”

Neste momento, Dr. João Alamy Filho passou a ser auxiliado pelos advogados Thomas Naves, José de Figueiredo Silva e Samuel Werneck.

Sebastião José Naves ao lado de sua esposa, Salvina Eulina Naves, dos filhos Gecilda Aparecida Naves (no colo), Geralita Naves de Sousa, Ivaldo Vicente Naves e Geralda Naves da Cunha. Na cadeira, a neta, Neide Naves da Cunha.

1956

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no dia 7 de abril, condenou o Estado a pagar aos irmãos Naves e a seus herdeiros a indenização de Cr$ 12.000.000,00; seguidos recursos foram interpostos ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais e ao Supremo Tribunal Federal.

1960

O Supremo Tribunal Federal pôs fim à batalha judicial no dia 8 de janeiro, no Recurso Extraordinário nº 42723 MG, cuja ementa foi a seguinte:

“Dano moral – Se repercute na economia popular, causando prejuízos, há que os responsáveis responder pelas indenizações de direito.”

Leia aqui a decisão.

1964

Falecimento de Sebastião José Naves.

1973

Trinta e quatro anos e cinco meses depois do acontecido, o jornal O Globo, de 5-10-73, publicou:

“Dois filhos de Joaquim Naves e a viúva de Sebastião Naves, os irmãos vítimas de erro judiciário que os condenou a 16 anos de prisão em 1937, em Minas Gerais, chegaram ontem a Brasília para receber a indenização de Cr$ 62.241,99 por força de decisão do Supremo Tribunal Federal”.

Os irmãos Naves foram vítimas de um dos maiores erros judiciários do Brasil. Nas palavras de Evandro Lins e Silva – ex-Ministro do STF – o juiz que pronunciou os réus num crime de morte, sem cadáver, posteriormente, declarou, com remorso: “Deus me tome as contas, como terá tomado aos desembargadores que funcionaram na causa e já faleceram”.

Gritou Roberto Lyra na época: “Sinto horror pela inocência martirizada”.

Mais um dos grandes erros judiciários do Brasil…

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